A entrevista do filósofo
Entrevista da semana: Manuel Sergio
Filósofo português analisa o atual momento do futebol e prega uma revolução a partir do Brasil
O progresso nas últimas décadas acelerou e intensificou um processo de mudança mundial. E nesse contexto, o futebol também se tornou diferente. O esporte não carrega mais as características que tinha décadas atrás, e isso compreende uma mudança na preparação de jogadores e equipes. Mas será que o caminho de evolução que o futebol toma é realmente o ideal?
Para o filósofo português Manuel Sergio, o futebol precisa urgentemente de uma revolução ética e metodológica. O lusitano, que esteve no Brasil nesta semana, é o precursor da ciência da motricidade, que entende os atletas como indivíduos complexos e em busca de superação constante. Assim, é fundamental que o esporte seja visto de acordo com os conceitos de totalidade e que não admita uma filosofia simplista e empobrecida.
Durante uma palestra concedida a treinadores e profissionais ligados ao futebol, Manuel Sergio usou a gênese da educação física para explicar um erro conceitual. Segundo ele, essa atividade ainda segue os preceitos do filósofo francês Renné Descartes, que dividiu os seres humanos entre corpo e mente e tentou analisar cada parte de maneira absolutamente isolada.
Ainda hoje, os jogadores de futebol são trabalhados de maneira isolada. Os treinamentos são concebidos para aprimorar um ou outro ponto do atleta e a maioria dos treinadores não se preocupa com o contexto que aquela atividade tem para a situação em que se encontra a vida do jogador.
Por conta disso, Manuel Sergio pediu uma revolução urgente no futebol. E pediu isso a partir do Brasil, que é o melhor do mundo nesse esporte. "Acho que deviam criar um grupo no Brasil e elaborar um manifesto com as coisas que devem ser alteradas no futebol. Como líder mundial, o país tem obrigação de fazer isso", cobrou.
Formado em Filosofia e doutorado em Motricidade Humana, o português era marxista e fez parte do partido comunista juntamente com o escritor José Saramago. Em 1968, Sergio resolveu sistematizar a compreensão do futebol como um esporte que aborde a complexidade humana, e não apenas o físico. Assim, criou a ciência da motricidade.
Desde então, o português tem tentado transformar seus conceitos e os conceitos da sociedade acerca do esporte. Apaixonado por futebol, Sergio cobra uma reformulação na concepção do esporte para que ele passe a funcionar como formador de pessoas.
Alguns conceitos de Manuel Sergio ainda esbarram no pensamento arcaico e rígido da maioria das pessoas que vivenciam o dia-a-dia do futebol. No entanto, o número de discípulos do português tem crescido constantemente. Um dos mais famosos é o português José Mourinho, atualmente no Chelsea, que já mostrou várias vezes ser partidário do pensamento de seu ex-professor.
Cidade do Futebol - Como surgiu seu interesse pelo futebol?
Manuel Sergio - Nasci do lado de um campo de futebol e convivo com esse esporte desde que eu era garoto. Sou apaixonado por esse espetáculo e só posso agradecer aos brasileiros por tudo que é feito pelo futebol. Apesar de acompanhar há tanto tempo, sempre aprendo mais do que ensino.
Cidade do Futebol - O José Mourinho (técnico do Chelsea) sempre cita as coisas que aprendeu com você. Como foi o contato com ele?
Manuel Sergio - O José Mourinho é um gênio. Ele é um homem muito diferenciado porque apanha o que a gente diz e aproveita o que é melhor para ele. Ele não desperdiça as coisas. Foi meu aluno há uns 25 anos e me perguntou qual seria o caminho para ele se transformar em um treinador de futebol. Eu disse que, caso ele não se especializasse em ciências humanas, ia ser sempre mediano. Ele rumou por esse caminho e sempre teve a virtude de estudar muito. O problema é que ele é um bocado convencido, e isso aborrece as pessoas na Inglaterra. Ele chegou lá de forma corajosa e atrevida, dizendo que ia conquistar as coisas, e essa postura não era esperada de alguém vindo de um país periférico.
Cidade do Futebol - E a ciência da motricidade, como surgiu?
Manuel Sergio - Foi em 1968. Outras pessoas haviam falado essa palavra antes, mas ninguém tinha sistematizado como ciência. A idéia é que o ser humano é um indivíduo em movimento intencional de superação constante. Ele pode ser compreendido por sua circunstância e isso é importante. O jogador é o que foi, o que é e o que pode ser. A motricidade pressupõe a complexidade do atleta, e não apenas a preparação física. O conceito é o trabalho de totalidade. A motricidade supõe, de fato, o desenvolvimento das estruturas componentes do sistema nervoso central; mantém a regulação, a execução e a integração do comportamento; traduz a apropriação da cultura e da experiência humana. O importante é admitirmos a passagem do ser humano físico para o ser humano em movimento.
Cidade do Futebol - Como sistematizar isso nos treinamentos?
Manuel Sergio - As atividades precisam ser concebidas de uma forma mais pedagógica e que aborde a complexidade dos atletas. O que acontece agora é que fazem treinos físicos. Não existem treinos físicos! Mesmo que o atleta faça só exercícios, vai mexer com o que não é físico. Se perguntarem a um médico se correr faz bem, ele vai dizer que sim porque é mais fácil julgar o que vê, mas não vai se preocupar com toda a complexidade desse movimento. O futebol é complexidade e isso quer dizer incerteza. São elementos demais presentes em um grupo, e por isso o treinador precisa ser um especialista em humanidades.
Cidade do Futebol - Mas a aplicação disso é viável?
Manuel Sergio - Por ser tão complexa, a atividade de um treinador exige constantes leituras e atualizações. Mas o tipo que só lê também não serve para nada. É preciso ir a campo e, tentando entender o jogo como um todo, fazer as atividades que trabalhem toda a complexidade dos atletas.
Cidade do Futebol - Qual o papel que o conhecimento empírico e a experiência como atleta têm para a formação de um treinador?
Manuel Sergio - Isso pode ajudar, mas não é fundamental. Ninguém precisa ter sofrido do estômago para ser um gastroenterologista. Existe um treinador em Portugal chamado Mario Muniz Pereira, que trabalha com atletismo e também é fadista. Ele tem muito mais elementos para entender a complexidade humana e o drama que é a vida. É importante acompanhar o progresso, mas o futebol é um esporte e a necessidade fundamental é ser tratado como tal.
Cidade do Futebol - O senhor falou sobre a complexidade do ser humano e a importância de o treinador compreender isso. Como isso pode ser feito?
Manuel Sergio - O método que deve ser utilizado no futebol é a hermenêutica [ciência que tem por objeto a interpretação de textos religiosos ou filosóficos, seus signos e o significado das palavras]. O jogador de futebol é um texto, e cabe ao treinador e à comissão técnica saber ler isso e decifrar. A relação entre treinador e atleta precisa ser a mesma de um leitor para um livro. A prática desportiva é sinal, mensagem e texto, e o treinador precisa ter a sensibilidade de captar esses sinais.
Cidade do Futebol - Mas como essa interpretação pode ser feita?
Manuel Sergio - É preciso partir do pressuposto de que o futebol é uma coisa muito séria, que engloba ciências de diversos tipos de natureza. Ele precisa compreender a parte lógica, as ciências biológicas e as ciências humanas, e o treinador é um líder de uma equipe com capacidade para fornecer uma leitura específica do atleta sobre cada um desses aspectos.
Cidade do Futebol - A leitura precisa dos sinais do jogador pode fazer o futebol virar uma ciência exata?
Manuel Sergio - De maneira alguma! Uma vez estava falando com um rapaz chamado Acácio Rosa, que era fumante, e passou por nós um jogador de rugby. Ele disse que invejava aquela disposição física e aquela preparação toda. E um pouco depois, durante o treinamento, o jogador de rugby teve um problema e morreu. Isso quer dizer que a maneira de compreender o futebol mudou e saiu do "corra!" para o "mexa-se!", mas ainda há vários elementos que podem ser diferenciais.
Cidade do Futebol - Qual o principal desses diferenciais?
Manuel Sergio - Ser feliz é algo fundamental para a pessoa levar uma vida saudável. Não acredito na existência de uma separação entre corpo e mente, e quem quiser entender o futebol precisa tentar entender o homem. É isso que eu tento passar e mostrar. É preciso trabalhar de uma forma mais ampla.
Cidade do Futebol - E como esse trabalho mais amplo pode ser inserido nas comissões técnicas?
Manuel Sergio - O treinador precisa se cercar de pessoas que entendam e possam dar contribuições práticas para o trabalho com os seres humanos. É esse o conceito de uma comissão técnica multidisciplinar que tanto se fala. As ciências precisam trabalhar em conjunto para extrair o melhor dos atletas. É importante trabalhar, mas admitir que ainda estamos na pré-história do conhecimento humano.
Cidade do Futebol - O futebol, então, precisa de uma nova base teórica?
Manuel Sergio - Não é só isso. Teoria e prática não podem ser compreendidas de forma isolada. A teoria faz nascer a prática. A teoria acompanha a prática. A teoria muda a prática. Essa seqüência precisa estar muito clara para que todos entendam que uma revolução é possível e a base para isso é o conhecimento. O conhecimento científico é importante, mas o futebol hoje é muito mais do que isso. Ele é um fato usado para explicar os dramas e multiplicar as taras da sociedade.
Cidade do Futebol - O futebol pode ser, realmente, um fomentador da saúde?
Manuel Sergio - Sim. Mas depende do cenário em que ele é visto. O torcedor sai do estádio mais nervoso do que entra e o próprio treinador sabe que o emprego dele não depende do quanto ele pode acrescentar à equipe, e sim dos resultados que a equipe conquistar. Infelizmente, o futebol nem sempre se preocupa com a educação e a saúde das pessoas que estão envolvidas com ele.
Cidade do Futebol - Você acha que já começou a mudar essa perspectiva?
Manuel Sergio - Eu tento conversar com o maior número possível de pessoas sobre a complexidade do futebol. O problema não está com quem participa disso, mas com o resto do mundo. A maioria ainda não entendeu que existe algo errado se o homem é um meio e o esporte é um fim. A relação precisa ser o contrário. O esporte ainda não é visto como algo transformador, mas uma coisa útil para alguns.
Cidade do Futebol - O tratamento dado ao futebol é diferente no Brasil e na Europa?
Manuel Sergio - A grande diferença é a realidade financeira. O futebol no Brasil é muito mais criativo, e lá eles tentam compensar isso com muita dedicação. Os brasileiros entendem o futebol muito mais que os europeus, e eles equilibram na dedicação. A maneira de ver o jogo é um pouco diferente, mas o principal é o dinheiro. Tanto aqui quanto lá, a maioria das pessoas ainda não enxergam o conceito de totalidade e complexidade do esporte.
Cidade do Futebol - Qual o caminho para o futebol evoluir, então?
Manuel Sergio - Eu acho que deveria acontecer uma revolução de treinadores, e acho que isso deveria começar no Brasil. O Brasil tem obrigação de fazer isso porque é o melhor do mundo e serve como exemplo para todas as outras nações. Acho que deviam criar um grupo no Brasil e elaborar um manifesto com as coisas que devem ser alteradas no futebol. Mas uma coisa com apelo mundial e não apenas regional. Por tudo o que sabe além dos outros e por ser o melhor do mundo, o Brasil tem obrigação de fazer isso urgentemente. O futebol precisa dessa revolução ética metodológica.
Um novo modo de pensar o futebol
O fim da função de preparador físico para o futuro do futebol
Filósofo português acredita que a função deve ser substituída pela de auxiliar-técnico
A preparação de um jogador de futebol divide-se atualmente entre treinos táticos (que envolvem a função dele para a equipe), técnicos (aprimoramento de fundamentos) e físicos (evolução do condicionamento).
Essa sistematização rígida, contudo, contraria o ideal moderno de conduta para um profissional de educação física.
Afinal, imaginar um treino que contemple apenas parte de uma pessoa é analisar a preparação individual de maneira extremamente simplória.
Diante da complexidade inerente à formação humana, torna-se impossível trabalhar o físico de um atleta sem que ele evolua sua parte técnica.
E mais do que isso, é errôneo pensar em atividades que façam o jogador aprimorar apenas seu condicionamento, sem nenhum ganho para a construção pessoal.
"É por isso que eu digo que não existe treino físico. Existe um treino de um ser humano, que pode até ser focado em uma área, mas não pode ser dissociado da evolução total da pessoa. Mesmo uma atividade física mexe com o que não é físico", ponderou o filósofo português Manuel Sergio, que esteve no Brasil nesta semana.
Por conta dessa postura, o português acredita que o conceito de preparador físico seja um dos maiores erros do futebol atual. "Essa função não existe. Ele pode ser um treinador-adjunto ou um auxiliar-técnico, mas nunca alguém que mexa só com o físico dos atletas. Isso seria impossível", explicou.
A idéia de atuação de um preparador físico como auxiliar-técnico corrobora o pensamento de alguns profissionais da área. "Não podemos pensar apenas em melhorar o condicionamento de um atleta para as partidas e esquecer das outras partes que cercam a preparação dele. Trata-se de uma pessoa e está exposta a toda sorte de problemas que uma pessoa comum pode ter", disse o técnico Celso Roth.
"O nosso trabalho funciona muito mais quando tem um respaldo de toda a comissão técnica. Não adianta fazermos o planejamento e a periodização física sem considerar o momento em que o técnico vai querer mudar o esquema ou dar mais ênfase aos fundamentos. Por isso, tudo tem que trabalhar em conjunto", determinou o preparador físico do São Paulo, Carlinhos Neves.
O ex-técnico palmeirense Tite também enalteceu a importância de um programa fundamentado de treinamento: "Todos os fatores fazem diferença para um trabalho funcionar. Uma vez eu tinha pensado em fazer uma atividade de piques com o elenco, mas nós vínhamos em uma seqüência de jogos. Então, o [fisiologista] Paulo [Zogaib] e o [preparador físico] Fábio [Mahseredjian] me ajudaram a medir as distâncias e ver o quanto nós poderíamos exigir de cada um. Então decidimos fazer o trabalho, mas com intervalos programados. Assim, conseguimos fazer uma coisa mais abrangente".
Outro que compartilha as idéias de Manuel Sergio sobre uma preparação integrada é o português José Mourinho, um dos principais discípulos do filósofo, que atualmente dirige o Chelsea.
"Reconheço que uma abordagem mais simplista e menos técnica do futebol exige que falemos separadamente de cada componente, mas não tem como você trabalhar só um lado de um atleta. É preciso trabalhar o atleta como um todo, e esse é um dos princípios importantes. É por isso que o treinador deve ser acompanhado por auxiliares e ver a complexidade de cada jogador", disse Mourinho em uma crônica publicada em Portugal em 2001.
Filósofo português analisa o atual momento do futebol e prega uma revolução a partir do Brasil
O progresso nas últimas décadas acelerou e intensificou um processo de mudança mundial. E nesse contexto, o futebol também se tornou diferente. O esporte não carrega mais as características que tinha décadas atrás, e isso compreende uma mudança na preparação de jogadores e equipes. Mas será que o caminho de evolução que o futebol toma é realmente o ideal?
Para o filósofo português Manuel Sergio, o futebol precisa urgentemente de uma revolução ética e metodológica. O lusitano, que esteve no Brasil nesta semana, é o precursor da ciência da motricidade, que entende os atletas como indivíduos complexos e em busca de superação constante. Assim, é fundamental que o esporte seja visto de acordo com os conceitos de totalidade e que não admita uma filosofia simplista e empobrecida.
Durante uma palestra concedida a treinadores e profissionais ligados ao futebol, Manuel Sergio usou a gênese da educação física para explicar um erro conceitual. Segundo ele, essa atividade ainda segue os preceitos do filósofo francês Renné Descartes, que dividiu os seres humanos entre corpo e mente e tentou analisar cada parte de maneira absolutamente isolada.
Ainda hoje, os jogadores de futebol são trabalhados de maneira isolada. Os treinamentos são concebidos para aprimorar um ou outro ponto do atleta e a maioria dos treinadores não se preocupa com o contexto que aquela atividade tem para a situação em que se encontra a vida do jogador.
Por conta disso, Manuel Sergio pediu uma revolução urgente no futebol. E pediu isso a partir do Brasil, que é o melhor do mundo nesse esporte. "Acho que deviam criar um grupo no Brasil e elaborar um manifesto com as coisas que devem ser alteradas no futebol. Como líder mundial, o país tem obrigação de fazer isso", cobrou.
Formado em Filosofia e doutorado em Motricidade Humana, o português era marxista e fez parte do partido comunista juntamente com o escritor José Saramago. Em 1968, Sergio resolveu sistematizar a compreensão do futebol como um esporte que aborde a complexidade humana, e não apenas o físico. Assim, criou a ciência da motricidade.
Desde então, o português tem tentado transformar seus conceitos e os conceitos da sociedade acerca do esporte. Apaixonado por futebol, Sergio cobra uma reformulação na concepção do esporte para que ele passe a funcionar como formador de pessoas.
Alguns conceitos de Manuel Sergio ainda esbarram no pensamento arcaico e rígido da maioria das pessoas que vivenciam o dia-a-dia do futebol. No entanto, o número de discípulos do português tem crescido constantemente. Um dos mais famosos é o português José Mourinho, atualmente no Chelsea, que já mostrou várias vezes ser partidário do pensamento de seu ex-professor.
Cidade do Futebol - Como surgiu seu interesse pelo futebol?
Manuel Sergio - Nasci do lado de um campo de futebol e convivo com esse esporte desde que eu era garoto. Sou apaixonado por esse espetáculo e só posso agradecer aos brasileiros por tudo que é feito pelo futebol. Apesar de acompanhar há tanto tempo, sempre aprendo mais do que ensino.
Cidade do Futebol - O José Mourinho (técnico do Chelsea) sempre cita as coisas que aprendeu com você. Como foi o contato com ele?
Manuel Sergio - O José Mourinho é um gênio. Ele é um homem muito diferenciado porque apanha o que a gente diz e aproveita o que é melhor para ele. Ele não desperdiça as coisas. Foi meu aluno há uns 25 anos e me perguntou qual seria o caminho para ele se transformar em um treinador de futebol. Eu disse que, caso ele não se especializasse em ciências humanas, ia ser sempre mediano. Ele rumou por esse caminho e sempre teve a virtude de estudar muito. O problema é que ele é um bocado convencido, e isso aborrece as pessoas na Inglaterra. Ele chegou lá de forma corajosa e atrevida, dizendo que ia conquistar as coisas, e essa postura não era esperada de alguém vindo de um país periférico.
Cidade do Futebol - E a ciência da motricidade, como surgiu?
Manuel Sergio - Foi em 1968. Outras pessoas haviam falado essa palavra antes, mas ninguém tinha sistematizado como ciência. A idéia é que o ser humano é um indivíduo em movimento intencional de superação constante. Ele pode ser compreendido por sua circunstância e isso é importante. O jogador é o que foi, o que é e o que pode ser. A motricidade pressupõe a complexidade do atleta, e não apenas a preparação física. O conceito é o trabalho de totalidade. A motricidade supõe, de fato, o desenvolvimento das estruturas componentes do sistema nervoso central; mantém a regulação, a execução e a integração do comportamento; traduz a apropriação da cultura e da experiência humana. O importante é admitirmos a passagem do ser humano físico para o ser humano em movimento.
Cidade do Futebol - Como sistematizar isso nos treinamentos?
Manuel Sergio - As atividades precisam ser concebidas de uma forma mais pedagógica e que aborde a complexidade dos atletas. O que acontece agora é que fazem treinos físicos. Não existem treinos físicos! Mesmo que o atleta faça só exercícios, vai mexer com o que não é físico. Se perguntarem a um médico se correr faz bem, ele vai dizer que sim porque é mais fácil julgar o que vê, mas não vai se preocupar com toda a complexidade desse movimento. O futebol é complexidade e isso quer dizer incerteza. São elementos demais presentes em um grupo, e por isso o treinador precisa ser um especialista em humanidades.
Cidade do Futebol - Mas a aplicação disso é viável?
Manuel Sergio - Por ser tão complexa, a atividade de um treinador exige constantes leituras e atualizações. Mas o tipo que só lê também não serve para nada. É preciso ir a campo e, tentando entender o jogo como um todo, fazer as atividades que trabalhem toda a complexidade dos atletas.
Cidade do Futebol - Qual o papel que o conhecimento empírico e a experiência como atleta têm para a formação de um treinador?
Manuel Sergio - Isso pode ajudar, mas não é fundamental. Ninguém precisa ter sofrido do estômago para ser um gastroenterologista. Existe um treinador em Portugal chamado Mario Muniz Pereira, que trabalha com atletismo e também é fadista. Ele tem muito mais elementos para entender a complexidade humana e o drama que é a vida. É importante acompanhar o progresso, mas o futebol é um esporte e a necessidade fundamental é ser tratado como tal.
Cidade do Futebol - O senhor falou sobre a complexidade do ser humano e a importância de o treinador compreender isso. Como isso pode ser feito?
Manuel Sergio - O método que deve ser utilizado no futebol é a hermenêutica [ciência que tem por objeto a interpretação de textos religiosos ou filosóficos, seus signos e o significado das palavras]. O jogador de futebol é um texto, e cabe ao treinador e à comissão técnica saber ler isso e decifrar. A relação entre treinador e atleta precisa ser a mesma de um leitor para um livro. A prática desportiva é sinal, mensagem e texto, e o treinador precisa ter a sensibilidade de captar esses sinais.
Cidade do Futebol - Mas como essa interpretação pode ser feita?
Manuel Sergio - É preciso partir do pressuposto de que o futebol é uma coisa muito séria, que engloba ciências de diversos tipos de natureza. Ele precisa compreender a parte lógica, as ciências biológicas e as ciências humanas, e o treinador é um líder de uma equipe com capacidade para fornecer uma leitura específica do atleta sobre cada um desses aspectos.
Cidade do Futebol - A leitura precisa dos sinais do jogador pode fazer o futebol virar uma ciência exata?
Manuel Sergio - De maneira alguma! Uma vez estava falando com um rapaz chamado Acácio Rosa, que era fumante, e passou por nós um jogador de rugby. Ele disse que invejava aquela disposição física e aquela preparação toda. E um pouco depois, durante o treinamento, o jogador de rugby teve um problema e morreu. Isso quer dizer que a maneira de compreender o futebol mudou e saiu do "corra!" para o "mexa-se!", mas ainda há vários elementos que podem ser diferenciais.
Cidade do Futebol - Qual o principal desses diferenciais?
Manuel Sergio - Ser feliz é algo fundamental para a pessoa levar uma vida saudável. Não acredito na existência de uma separação entre corpo e mente, e quem quiser entender o futebol precisa tentar entender o homem. É isso que eu tento passar e mostrar. É preciso trabalhar de uma forma mais ampla.
Cidade do Futebol - E como esse trabalho mais amplo pode ser inserido nas comissões técnicas?
Manuel Sergio - O treinador precisa se cercar de pessoas que entendam e possam dar contribuições práticas para o trabalho com os seres humanos. É esse o conceito de uma comissão técnica multidisciplinar que tanto se fala. As ciências precisam trabalhar em conjunto para extrair o melhor dos atletas. É importante trabalhar, mas admitir que ainda estamos na pré-história do conhecimento humano.
Cidade do Futebol - O futebol, então, precisa de uma nova base teórica?
Manuel Sergio - Não é só isso. Teoria e prática não podem ser compreendidas de forma isolada. A teoria faz nascer a prática. A teoria acompanha a prática. A teoria muda a prática. Essa seqüência precisa estar muito clara para que todos entendam que uma revolução é possível e a base para isso é o conhecimento. O conhecimento científico é importante, mas o futebol hoje é muito mais do que isso. Ele é um fato usado para explicar os dramas e multiplicar as taras da sociedade.
Cidade do Futebol - O futebol pode ser, realmente, um fomentador da saúde?
Manuel Sergio - Sim. Mas depende do cenário em que ele é visto. O torcedor sai do estádio mais nervoso do que entra e o próprio treinador sabe que o emprego dele não depende do quanto ele pode acrescentar à equipe, e sim dos resultados que a equipe conquistar. Infelizmente, o futebol nem sempre se preocupa com a educação e a saúde das pessoas que estão envolvidas com ele.
Cidade do Futebol - Você acha que já começou a mudar essa perspectiva?
Manuel Sergio - Eu tento conversar com o maior número possível de pessoas sobre a complexidade do futebol. O problema não está com quem participa disso, mas com o resto do mundo. A maioria ainda não entendeu que existe algo errado se o homem é um meio e o esporte é um fim. A relação precisa ser o contrário. O esporte ainda não é visto como algo transformador, mas uma coisa útil para alguns.
Cidade do Futebol - O tratamento dado ao futebol é diferente no Brasil e na Europa?
Manuel Sergio - A grande diferença é a realidade financeira. O futebol no Brasil é muito mais criativo, e lá eles tentam compensar isso com muita dedicação. Os brasileiros entendem o futebol muito mais que os europeus, e eles equilibram na dedicação. A maneira de ver o jogo é um pouco diferente, mas o principal é o dinheiro. Tanto aqui quanto lá, a maioria das pessoas ainda não enxergam o conceito de totalidade e complexidade do esporte.
Cidade do Futebol - Qual o caminho para o futebol evoluir, então?
Manuel Sergio - Eu acho que deveria acontecer uma revolução de treinadores, e acho que isso deveria começar no Brasil. O Brasil tem obrigação de fazer isso porque é o melhor do mundo e serve como exemplo para todas as outras nações. Acho que deviam criar um grupo no Brasil e elaborar um manifesto com as coisas que devem ser alteradas no futebol. Mas uma coisa com apelo mundial e não apenas regional. Por tudo o que sabe além dos outros e por ser o melhor do mundo, o Brasil tem obrigação de fazer isso urgentemente. O futebol precisa dessa revolução ética metodológica.
Um novo modo de pensar o futebol
O fim da função de preparador físico para o futuro do futebol
Filósofo português acredita que a função deve ser substituída pela de auxiliar-técnico
A preparação de um jogador de futebol divide-se atualmente entre treinos táticos (que envolvem a função dele para a equipe), técnicos (aprimoramento de fundamentos) e físicos (evolução do condicionamento).
Essa sistematização rígida, contudo, contraria o ideal moderno de conduta para um profissional de educação física.
Afinal, imaginar um treino que contemple apenas parte de uma pessoa é analisar a preparação individual de maneira extremamente simplória.
Diante da complexidade inerente à formação humana, torna-se impossível trabalhar o físico de um atleta sem que ele evolua sua parte técnica.
E mais do que isso, é errôneo pensar em atividades que façam o jogador aprimorar apenas seu condicionamento, sem nenhum ganho para a construção pessoal.
"É por isso que eu digo que não existe treino físico. Existe um treino de um ser humano, que pode até ser focado em uma área, mas não pode ser dissociado da evolução total da pessoa. Mesmo uma atividade física mexe com o que não é físico", ponderou o filósofo português Manuel Sergio, que esteve no Brasil nesta semana.
Por conta dessa postura, o português acredita que o conceito de preparador físico seja um dos maiores erros do futebol atual. "Essa função não existe. Ele pode ser um treinador-adjunto ou um auxiliar-técnico, mas nunca alguém que mexa só com o físico dos atletas. Isso seria impossível", explicou.
A idéia de atuação de um preparador físico como auxiliar-técnico corrobora o pensamento de alguns profissionais da área. "Não podemos pensar apenas em melhorar o condicionamento de um atleta para as partidas e esquecer das outras partes que cercam a preparação dele. Trata-se de uma pessoa e está exposta a toda sorte de problemas que uma pessoa comum pode ter", disse o técnico Celso Roth.
"O nosso trabalho funciona muito mais quando tem um respaldo de toda a comissão técnica. Não adianta fazermos o planejamento e a periodização física sem considerar o momento em que o técnico vai querer mudar o esquema ou dar mais ênfase aos fundamentos. Por isso, tudo tem que trabalhar em conjunto", determinou o preparador físico do São Paulo, Carlinhos Neves.
O ex-técnico palmeirense Tite também enalteceu a importância de um programa fundamentado de treinamento: "Todos os fatores fazem diferença para um trabalho funcionar. Uma vez eu tinha pensado em fazer uma atividade de piques com o elenco, mas nós vínhamos em uma seqüência de jogos. Então, o [fisiologista] Paulo [Zogaib] e o [preparador físico] Fábio [Mahseredjian] me ajudaram a medir as distâncias e ver o quanto nós poderíamos exigir de cada um. Então decidimos fazer o trabalho, mas com intervalos programados. Assim, conseguimos fazer uma coisa mais abrangente".
Outro que compartilha as idéias de Manuel Sergio sobre uma preparação integrada é o português José Mourinho, um dos principais discípulos do filósofo, que atualmente dirige o Chelsea.
"Reconheço que uma abordagem mais simplista e menos técnica do futebol exige que falemos separadamente de cada componente, mas não tem como você trabalhar só um lado de um atleta. É preciso trabalhar o atleta como um todo, e esse é um dos princípios importantes. É por isso que o treinador deve ser acompanhado por auxiliares e ver a complexidade de cada jogador", disse Mourinho em uma crônica publicada em Portugal em 2001.
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